terça-feira, 15 de maio de 2007

Carta para a Mãe.

Autoria: Márcio Roberto de Almeida.

Oi, mãe,
Eu ontem reli uma carta sua, na qual você, como sempre, continua se preocupando com um monte coisinhas sem importância: quer saber se está tudo bem na escola, se eu estou me alimentando direito, se não estou me envolvendo com amizades erradas, etc, etc... Mãe, quantas vezes eu já disse que a senhora não tem motivos pra se preocupar comigo! Aqui tá tudo bem e eu estou me comportando direitinho! Pode ficar sossegada!...
Já tem um bom tempo que a senhora escreveu, né, e eu tinha até me esquecido de responder.
Mas hoje eu resolvi dar alguma notícia, por dois motivos: primeiro, porque bateu uma saudade danada da senhora e, também, porque hoje completa mais um aniversário do dia que a gente se encontrou pela última vez, lembra?
Aliás, eu acho até que deveria me desculpar com a senhora por causa daquele dia. Eu estava terrivelmente apavorado, transtornado e tomado por uma comoção violenta! Acho que a senhora nem deve ter notado, porque durante aquelas horas que a gente passou juntos, a senhora ficou o tempo todo com uma expressão tão meiga! Parecia que descansava profundamente, sonhando alguma coisa muito bonita!... Mas, eu penso que a senhora entende as razões pelas quais eu me comportei daquele jeito, né? Naquele dia, eu enfrentava um dos fardos mais pesados que Deus me pôs nas costas - desses que a gente nunca aprende a carregar, quase um martírio!... E, por causa disso, eu me sentia totalmente perdido, sem rumo e desesperado. Me lembro que o papai, quando me viu daquele jeito, me abraçou e disse “filho, a vida vai continuar!...”. Na hora eu não pensava assim, achava que o mundo tinha desabado. Mas ele tinha razão! O tempo passou e a vida continuou...
Porém, naquele dia eu preferia que a gente nem tivesse se encontrado, sabia?! Preferia que você tivesse deixado um recado lá em casa dizendo “Aháá!.. Te peguei! É primeiro de abril e eu não estou em casa! Fui pra Goiás com seu pai e vou demorar uns trinta dias pra voltar!...”. Mas não foi assim!... E já se passaram trinta e dois anos! Mas, como a senhora sempre disse! “Cuáh”, deixa estar!... Deus sabe o que faz, né...
O importante é que estamos todos bem e a senhora continua a mesma mãezona, cheia de paciência, meio chorona à toa, às vezes, mas ainda é a mais carinhosa e mais legal de todas as mães (vê se não fica exibida demais por causa disso, viu!...)
Mas, mãe, daquele dia pra cá, muita coisa boa aconteceu e eu ainda nem contei pra senhora! Eu me formei naquela escola! Lembra que te contei que era uma escola enorme, que o prédio era umas dez vezes maior que o Estadual e que tinha mais de mil alunos? Pois é. Me formei lá, depois entrei pra faculdade e me formei também! A senhora costumava dizer que eu deveria ser um Engenheiro quando crescesse, né!... Pois é, eu consegui! Depois disso, ainda inventei de estudar mais! Nem sei pra que, mas todo mundo achava que seria melhor e eu aproveitei o tempo que tinha à noite!...
Mãe, tava ansioso pra te contar: eu tenho duas filhas, já grandes! São lindas!... Mais altas do que eu, acredita? Além disso, ainda tenho um menino pequeno que é uma bênção de Deus! Precisava de ver!... Do jeito que a senhora sempre foi apegada com menino pequeno, eu penso que ia ficar doidinha com a beleza e com a alegria dele. Além disso, ainda vai nascer outra filha minha daqui a uns três meses. Essa eu queria que fosse parecida com a senhora! Sabe aquelas fotos antigas suas, de quando tinha uns quatorze anos de idade? Era muito linda, né! E essa sua calma, essa paz com que a senhora sempre resolve as coisas!... Se ela te puxasse, seria uma graça de Deus! Ah, eu ia achar bom demais! Mas, sabia que isso pode muito bem acontecer?!.. É que a mãe dela tem esse seu gênio: calma, carinhosa! Um anjo de pessoa! A senhora iria gostar muito dela...
Sabe, mãe, a saudade às vezes me faz lembrar de tanta coisa passada! Até dos castigos que, na hora, a gente quase morria de medo, mas depois ficava tudo bem...Teve um dia que a senhora tava fazendo pamonha, lá no Barreiro, com a Julieta do Joãzinho Preto, e me mandou ira na casa da Tia Helena buscar uma peneira pra coar a massa. Lembra, disso? Eu sei que, antes de chegar lá, o Fernando me chamou pra ver um balanço de cipó que eles tinham acabado de fazer. Dizia ele que o balanço era bom demais e que subia da altura de uma macaúba!... Aí, eu não pude resistir e a gente se envolveu por lá muito tempo. Além de balançar bastante ainda tivemos que amassar umas moitas de Palácio pra amaciar o tombo, caso o cipó arrebentasse...
Quando cheguei na Tia Helena, outro portador já tinha vindo e levado a tal peneira. Então, eu saí correndo feito doido... Atravessei aquele Barreiro todinho sem parar, pensando nas conseqüências da minha irresponsabilidade. Mas, hoje eu vejo que aquele medo era só por causa do castigo moral porque, na verdade, as suas chineladas (agora que sou grande, eu posso falar...) não doíam nada, nada!... Eu tinha mais medo até da Tôca, que nunca levantou a mão pra dar nenhum tapa na bunda de ninguém lá de casa... Naquele dia, quando cheguei, todo suado, a senhora me ameaçou de “pegar de coro” se eu fizesse uma coisa dessas de novo...
Toda a vida eu fui muito calado, mas acredito que, apesar disso, a senhora sempre entendeu e soube que, mesmo semfalar, eu te amo muito, né, mãe! Aliás, a senhora é umas das pessoas com quem eu mais me abro... Me lembro de um dia que me pediu pra ir com o papai pro Indaiá, fazer companhia e abrir as porteiras pra ele. Dois dias depois, quando chegamos de volta, ele caçoou que eu tinha ido mudo e voltado calado! Naquela hora eu fiquei meio magoado com aquele comentário. Mas você deu um sorriso tão bonito, me passou a mão no cabelo, como se quisesse penteá-lo pra trás e disse: “Ele é um menino muito bom!...”. Foi um afago que eu guardei no coração...
Eu ainda não consegui parar com aquela mania que eu tinha, de ficar acordado de madrugada, pensando... E nessas horas eu sempre sinto muita saudade da senhora e de tudo aí de casa. Tenho saudade das férias... No fim de ano, tinha o Natal lá no Barreiro! Era muito bom, né. Tinha aquela vitrola em que a tampa era uma caixa de som. Além dos discos do Silveira e Silveirinha, que eles mesmos traziam para o papai, ainda havia o disco novo do Roberto Carlos que o Néder comprava pra senhora...
Nessas férias só não era muito bom as capinas de arrozal. Num ano era no arrozal do chapadão. No outro, o arrozal da moita de bambu! Disso eu não tenho muita saudade, não. Mas, também tinha a parte boa. Era quando a gente tava ali capinando desde manhãzinha e chegava a gamela de comida do almoço que a senhora mandava! Ah!... essa hora era sempre uma alegria muito grande. Que comida gostosa!...
Nas férias de julho tinha o carreto de milho da invernada, no carro de bois! Me lembro sempre disso também e, hoje, até sinto saudades. Mas não era muito bom. Que madrugadas geladas, credo!... Lembra que a senhora arranjava uns paletós velhos e umas capas pra eu e o Édi do Rubens vestir pra ir buscar os bois no pasto. Saíamos os dois, lá pelas quatro da manhã, com aquela lanterna velha que sempre estava com as pilhas fracas. Era muito, muito frio... Mas, ainda assim, antes do dia amanhecer já estávamos com a traia arriada a caminho da Invernada! Às vezes iam dois carros de boi, né e eu sempre ia encolhido num cantinho da esteira, coberto pelo caniço e pensando no calorzinho do alicerce da sua fornalha...
Mas essas lembranças também têm uma parte boa: era quando a gente chegava em casa de volta, muitas vezes já de noite (quando o carro de bois tombava ou encravava), todo mundo varado de fome e, então, tinha aquelas paneladas de arroz, tutu, lingüiça frita e ovo!... Que cheiro delicioso!... Não existe comida mais gostosa em lugar nenhum do mundo!... Eu acho que a senhora deve ser muito boa cozinheira porque, olha que eu já experimentei comida de muito lugares, mas nada se compara com as suas...
Mãe, o resto das coisas aqui em casa vão muito bem, fora a saudade que sentimos da senhora. Os meninos estão todos bem! Uns mais desobedientes que não dão muito valor nas coisas que a senhora sempre falou mas, no fundo, sua renca de menino deu tudo gente boa! Todos os dezessete.
Ah!... Mas tem uns que, de vez em quando, ainda me atentam até hoje! A Mãe Néca dizia que era eu que implicava as meninas, né. Mas, por mais que a senhora tenha pedido, ainda tem gente me chamando de orêiudo, dentudo e até de coisas piores... Mas, não se preocupe! Eu não me importo mais com isso. Já acostumei e nem ligo, mesmo se você ou a Tôca não estiverem por perto pra me protegerem...
Um beijo e fica com Deus, mãe.

Márcio.

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Homenagem dedicada à minha mãe, Isaltina Barbosa Ribeiro. postada por ocasião do aniversário de 32 anos de seu falecimento, ocorrido em primeiro de abril de 1975, aos 52 anos de idade.

2 comentários:

Leda disse...

Márcio, estou encantada com essa carta, mamãe e eu nos emocionamos muito ao ler o que escreveu. Parabéns pelo seu modo de escrever e pela simplicidade com que usa as palavras. Confesso que me senti lendo um dos romances de Guimarães Rosa....um grande abraço, Ledinha.

Leda disse...

Tenho certeza que a "Titia", como diz minha mãe, ficou muito feliz ao receber sua carta .......